Espaço. Vazio.

Espaço-silêncio.

Aquele ponto na frente do espelho é aquela que aguarda.
Sou eu.

Depois de um ônibus, dois metrôs, um trem e uma caminhada, celebro a travessia neste silêncio de espera. Travessia da cidade? Travessia Butantã-Santo André, rumo à @elcvsa onde tenho a alegria de ser “professora de roteiro”?

Não.

A travessia do tremor, confrontando todas as vozes que resolveram gritar dentro de mim, dizendo que o mundo é perigoso, caótico, irracional. Que tudo o que eu faço é irrelevante, que encarar a multidão nos transportes públicos é abrir as portas para a insanidade.

Depois de uma hora e meia ou mais, chego. Um pouco mais cedo, para poder respirar.
Após o ruído incessante do caminho, o contraste.

Aguardo.

Logo logo, a sala torna-se cheia. Cheia de gente e suas histórias, lindas histórias pedindo forma, pedindo escrita, pedindo casa.
No meio do encontro, a pergunta que não queria calar grita:

“Como saber se o que eu tenho para contar vale a pena escrever?” – Carol me traz a questão. É sempre curioso quando alguém nos devolve nossas próprias perguntas.

Tudo vale a pena, se vemos em profundidade. Porque, no profundo, nossas histórias se encontram.
Então entendo: não se ensina como escrever. O que tento fazer é firmar este imenso vazio, espaço-útero-pleno-de-possibilidades, para que as histórias que querem nascer emerjam, e que todas as pessoas ali sejam testemunhas de sua relevância. Isso a gente sente na pele, no peito, em comoções repentinas ou pequenos arrepios.

Depois a gente usa o repertório, o conhecimento, a carpintaria, a técnica (isso sim se aprende) para dar uma forma potente. Mas antes, escreve-se com o ouvido. Parindo.

O tempo compartilhado passa, deixando um rastro de inspirações.
Ao deixar o espaço, já tarde da noite, com o percurso de volta pra casa à frente, deixo também de escutar as vozes mórbidas que me acorrentavam. Eu sei que elas continuarão ali, à espreita. Mas, nesse momento, levo comigo as vidas com quem dividi as últimas horas.
Sinto a força das mãos dadas na travessia, o carinho de tantas pessoas queridas.
E sempre agradeço por ter vencido o medo. Pelo menos, por mais um dia.

Livrando a reta

Sou uma mulher de 48 anos.

Digo isso não só pra declarar idade, mas porque quero falar do que venho observando nas minhas companheiras de geração.

Que estamos cansadas, nem vou comentar. É quase como soltar um “ai que calor” na onda de sol escaldante. Que estamos confusas, sobrecarregadas, descabeladas (eu, pelo menos), também não. É chover no molhado, ainda que seja importantíssimo continuar falando sobre isso depois de séculos de silenciamento.

Mas hoje quero falar do foda-se.

Não daquele rebelde, dos vinte e poucos, que bota a língua pra fora e contesta as estruturas externas. É outro, um foda-se pra dentro. Pra todo lixo mental introjetado (só que glamourizado), gerador dos devaneios que nos prendem a uma realidade insustentável. O Reino das Águas Plácidas.

Quer alguns exemplos? Carreira em linha reta, felicidade inabalável, certeza absoluta de tudo, explicação pros mistérios, produtividade compulsória, lacração compulsiva, julgamento obsessivo, iluminação ilusória, relacionamento perfeito, corpo oprimido (por chantagens do tipo “barriga negativa” ou “peito que não segura lápis”).

Tchau pra tudo isso.

Estou na ponte entre o ser ou enlouquecer. E não estou falando daquela “loucura boa e disruptiva”, mas de estados mentais lastimáveis provocados por uma cisão interna já insustentável, que vem rasgando a gente por dentro.

Cresci em uma época em que poderíamos (portanto, deveríamos querer) “conquistar” tudo e mais um pouco. Não que isso tenha sido totalmente ruim, porque foi um grande motor. Apesar de todos os (coloque aqui todos os “ismos” que nos acorrentam), avançamos na direção de ideais grandiosos, e muitos frutos vieram daí.

O problema é que… esses frutos bastam para validar a vida?

Eles nos alimentam?

Só por um instante. Porque a colheita nunca é o suficiente. Nunca.

Atualmente, o prazo de validade de cada conquista é o tempo de uma postagem. As regras, sempre mutantes, nos pedem mais, e mais, um jogo cada vez mais volátil rodando em um universo cada vez mais instável, tão diferente daquele em que eu vivia na ocasião em que meus sonhos se formaram, lá pelos superfantásticos anos 80, voando no Balão Mágico.

Sonho cria raiz, sabia? Ele não muda tão rápido, na velocidade dos tempos. O que fazer com aqueles mais antigos, que não cabem mais ser sonhados, porque pertenciam a uma história tosca que nos contaram para fazer a máquina girar? Ainda mais em um momento de vida em que somos também cuidadoras de filhos, pais idosos, ou de tantas pessoas queridas que necessitam do nosso apoio?

Então… como conciliar o glamoroso desfile no tapete vermelho que prometemos às nossas Dyvas com o dia a dia demandante da vida em carne, osso e suor, quando simplesmente chegar ao pôr-do-sol sentindo-se minimamente bem é equivalente ao décimo terceiro trabalho de Hércules?

Eis a pergunta que venho lendo no olhar de muitas amigas, especialmente aquela que me dá bom-dia todos os dias, do lado de lá do espelho, espelho meu.

“Ah, então quer se libertar de mim?” – indaga, desafiante, o Mestre do Reflexo.

Ao ver minha cara de “foda-se”, ele completa:“Então está mesmo pronta para deixar aqui teus devaneios e ouvir, sem ressalvas, o canto da tua alma?”

Deliciando-se com meu silêncio ofegante, ele me aponta a linha acarpetada, reta e escarlate, que brilha sob os refletores.

Sim, ele acha que ganhará o jogo.

Sim?

Às vezes a gente quebra

Foi isso o que a árvore sibipiruna em frente de casa me disse quando um grande galho dela partiu, acometido pela força dos ventos.

Depois, soube que no Sítio dos Bambus, onde fica a escola dos meus filhos, tombou um enorme eucalipto. Era como uma entidade, imenso, reinando no meio das salas de aula. “Eu não sou como os bambus, resiliente às tempestades”, ele me disse. “Eu também quebro.” E, magnífico que é, escolheu um feriado para o espetáculo da sua queda, sem atingir ninguém.

Às vezes o corpo quebra, seja um galho ou pela raiz. Quebrar gera um “antes e depois”, com um abismo no meio. Para dourar essa fenda, a cultura japonesa criou o Kintsugi, colocando ouro nas cicatrizes. Mas elas estarão lá, visíveis. E o vaso se transformou.

Às vezes, gente quebra. Há ouro que remende gente?

Neste ano também tombei, após tempos de tanto envergar. Eu, de natureza flexível, percebi que mesmo os bambus tem limite. E que minha ruptura se deu rasgando a brecha do meu maior medo: o de não conseguir segurar o mundo na copa. Ops, nas costas.

Às vezes a gente quebra e, ao quebrar, faz barulho, porque o escuro do abismo assusta.

Depois, faz silêncio.

Um longo silêncio.

Nele, estou.

Nessa pausa, coletei os pedaços da minha irmã sibipiruna que também se fraturou. Como forma de reverenciá-la, lapidei alguns de seus galhos para ver como eram por dentro, além da casca dura. Descobri novos desenhos, suaves, insinuantes.

E ela me contou um segredo: “às vezes, a gente quebra só pra poder se multiplicar em novas formas.

Para dançar pela vida de um outro jeito, com menos peso.”

E temendo menos os ventos do que a própria rigidez.

***

(Fica aqui minha gratidão por todas as mãos amorosas que me apararam na queda. Vocês sabem quem são)

II

Noutro dia, vendo um vídeo-propaganda de “tratamentos para menoPAUSA”, paralisei. A frase que encerrava o anúncio era: “Você não precisa pausar sua vida”.

Não?

Aquela afirmação me gerou revolta porque, naquele momento, pausar era tudo o que eu queria. Pausar era o movimento que me faltava. E o tal “tratamento” prometia, gloriosamente, me livrar desse direito, que hoje é quase um privilégio. E ainda chamar de vantagem.

Não, pessoal. Parem as máquinas.

Eu quero pausa. Maispausa.

Muuuuuuuuuuuita p a u s a.

Ainda que não seja fácil.

Parando, tive que lidar com o terror de perder não só o lugar na janelinha que me levou anos para conquistar, mas o bonde inteiro. O medo de cair do trem. Perder a rota da sociedade. Ficar para trás, sozinha, enquanto os mais aptos seguiam no trilho.

Sim, é como eu experimento. E se, apesar sentir tudo disso, eu parei, não foi por rebeldia, ou por sustentar ideologias. Foi porque simplesmente não consegui continuar.

O sistema inteiro parou.

Doeu, mas foi isso que me colocou frente a frente com minhas reais necessidades. Não aquelas que aprendi a ter, fruto da cultura da época, mas as que foram sendo sussurradas a cada crise. Quase inaudíveis, em meio a tanta gritaria das múltiplas vozes em protesto, mas fortes o suficiente para chegar à minha consciência.

Nesses diálogos insólitos, entendi: a pausa era a única coisa que me conectava a algo diferente do sofrimento mental que eu sentia. Elas prolongavam o tempo da respiração sem medo que fosse um tempo roubado de coisas mais importantes. Fiquei tão necessitada do ato de pausar que, um dia, parei para contemplar o sinal que a representa. Os dois tracinhos para cima.

UaU.

Nas duas colunas verticais que a simbolizam, senti descansar o pensamento.

As duas barras paralelas me lembraram, e muito, aquele monolito do “2001, uma Odisseia no Espaço”, ou qualquer outro monumento que representasse a mesma coisa: a ligação do céu com a terra.

Conexão.

Pausar para silenciar, silenciar para ouvir, ouvir para conectar. Religar não só os planos altos com os baixos, mas também na horizontal, ligando gente com gente.

Pasmei: a pausa, na horizontal, significa igualdade.

Igualdade cria ponte. Cria identidade, conjunto, coletivo, conversa. Cria com.

Na igualdade, também pausamos. Descansamos o eterno competir pelo pódio, aliviamos a dor da separatividade e da exclusão, despertamos da ilusão de sermos mais, ou menos. Igualdade traz equanimidade. Alívio. E abre nosso campo para novas trocas.

(Novamente, as ligações.)

E a viagem foi além: juntando a pausa pro alto com a ponte pros lados, formou-se uma cruz. Uma cruz aberta, estranha, formada por retas paralelas. Uma cruz que se expande até o infinito, em todas as direções.

No meio, bem delimitado, vi o ponto de conexão. Nosso coração. Aquele que pulsa no hiato, princípio e fim de todas as coisas, coisa que só se nota quando a gente para.

A nota da vida, então, atinge um semitom mais alto. Na música, eis o sustenido. Do latim, sustinere. Apoio, suporte. Sustentação. Seu sinal? #.

# pode até virar ócio, brinquedo de jogo da velha, pra quem se permite pausar com inutilidades. Pausar pra cima, pra baixo, pros lados, pro fundo.

Profundamente.

E a gente, fazendo tantas hashtags por aí, nem percebe o que elas também podem ser…

#conexão

Vou ali viver e já volto

Gente querida,

Sei que nem preciso justificar a minha ausência nesta e em outras redes, porque minha relevância aqui é pouca, mas gostaria de reiterar o que minha inconstância já tornou óbvio: não dou mais conta, há tempos, de tanta “presença virtual”.

Se isso já me fez ansiosa, ou inadequada, hoje me faz livre.

Se continuo a aparecer por aqui de vez em quando, é porque sinto que ainda há diálogos possíveis, e pessoas muito queridas com quem gosto de conversar. Gente que, por força das circunstâncias, só “vejo” por aqui. (Se você me leu até agora, provavelmente é uma dessas pessoas.) Por isso, ao invés de deletar minha conta, decidi comunicar abertamente, quase como um decreto, o que já faço há tempos: minha intenção de usar este espaço como um café virtual, e passar a compartilhar com vocês algumas descobertas, dúvidas e reflexões.

Algumas delas são bem bestas, ou ManoeldeBarreanas. Como o espanto de ver, após uma tempestade, uma mínima flor de sabugueiro se aninhar no centro de uma rosa cor-de-rosa, passando de flor a miolo. (vide post passado). Ou mesmo botar reparo em como a aranha que mora em nossa janela, apelidada Charlote, conseguiu reconstruir sua teia após a mesma intempérie. (esperta ela, cuja casa permeável contempla as mudanças)

Às vezes falarei da vida, ou da sua sede, reflexões sobre o que antes eu chamei de CRISE, ou BURNOUT, mas depois entendi como GRITO DA ALMA.

Minha travessia no deserto.

Dificilmente comentarei sobre os “temas em pauta”, não porque não os considere importantes, mas porque entreguei meu pensar ao meu sentir, e isso dificulta rápidas análises sobre qualquer coisa. Minha digestão anda lenta, ineficiente ao ritmo das redes, e os temas que tem me ressoado falar talvez não sejam tão urgentes… são crônicas sobre o nada que pousa entre um fio e outro da vida… o nada-tijolo da Charlote. O nada que também sustenta a teia, que deixa o ar passar, que torna tudo arejado. O nada improdutivo onde passei tantos medos, o nada que tanto me aterrorizou, o nada que agora engendra o todo que me cerca.

E se hoje não falei nada do que prometi falar, é bem assim mesmo… conversa fiada é assim, o fio vai pra onde o coração aponta.

CAPITALITE ou um sonho para chamar de seu.

– Tá tudo bem com você?

– Não.

– Mas o que você tem?

Esta tem sido a pergunta dos últimos meses.

A resposta mais imediata é: estou atravessando uma crise. Enorme, mas nada original. Nem preciso descrever em detalhes suas características porque, infelizmente, ela é bastante conhecida por ser o mal de muita gente. Os seus nomes são muitos: crises de ansiedade, síndrome de burnout, entre outras variantes que buscam definir uma atmosfera bastante particular: aquela neblina dilacerante que tinge a vida de cinza, fazendo com que a existência se pareça a um pesadelo sem previsão de término, porque não se está dormindo. Pelo menos, não aparentemente.

Um horror.

Eu já havia experimentado crises desse tipo em doses pontuais, mas nas últimas semanas elas se agarraram em mim como um náufrago, por dias a fio. Achei que ia enlouquecer. Tentei me livrar aos prantos, correndo de medo deste escuro, esperneando, também em naufrágio. Depois sucumbi, largando tudo o que achei que jamais poderia largar, contando com apoio de toda a minha rede de afetos. Pessoas maravilhosas que cuidaram de mim (e ainda cuidam), desde as mais próximas, amigos e familiares, àquelas desconhecidas que se dedicam a acolher a dor alheia.

Nada, nada, nada mesmo se compara à gratidão que eu senti ao perceber tantas mãos generosamente estendidas quando eu estava desabando em pleno abismo. Essa gente querida me fez chorar de alívio não só pelo apoio oferecido (entre reiki, johrei, rezas, massagens, acupunturas, canjinhas e escutas) mas também por ter me mostrado que a bondade ainda existe. À flor da pele (ou em carne viva), experimentar este calor humano teve um efeito em mim como água no deserto. Uma medicina poderosa, porque parte desta crise vinha justamente do terror à barbárie, e do medo de que nossa humanidade estivesse chegando ao seu colapso final.

Como se a História pudesse ter fim.

*

 Contudo, mesmo com tantas mãos dadas, havia um ponto de solidão nessa travessia, uma parte que caberia somente a mim resolver. O problema é que, justo neste momento, quem estava na torre de comando não era a mulher maravilha, mas aquela pessoa mais frágil, trêmula, inadequada, “inoperante”.

Como poderia uma criança superar o vácuo do abismo?

A criança treme. Esconde-se, grita, pede colo, sai em disparada com o monstro ao encalço. Em um desses desesperos, tentando me livrar de todo o mal do mundo que se expressava como uma “nuvem de nada” dentro do peito, morrendo de medo de não voltar mais ao que era antes, à minha lucidez, à solidez de minhas células, ouvi do meu companheiro: “Não adianta você fugir. Tem que conversar com essa coisa”.

Essa coisa.

Aquilo fez um estranho sentido, mesmo em um estado onde nenhuma palavra soava clara. Sim, era isso mesmo. Enquanto eu estivesse buscando uma “cura”, um exorcismo, uma “limpeza”, como se tivesse sendo possuída por qualquer entidade maligna, a coisa piorava. E se fosse algo a ser escutado? E se aquilo estivesse se apresentando daquele jeito dramático porque estava sendo ignorado há tempos?

Quem sabe?

Algo dentro de mim ressoou, penetrou em alguma camada secreta chamando coragem, e então olhei pra “coisa” como quem olha pra um bicho. Nem iria correr, nem ser pega ou devorada. Esse era meu novo plano.

Seria possível travar alguma espécie de diálogo?

O bicho teria voz?

Tinha. E era uma fala doída.

Escutei seu lamento entre meus próprios dentes, com meu esqueleto desestruturado em total terremoto, entre um choro e outro. Um choro sentido, um choro de mil vozes. Vi também que o bicho tinha uma forma de onda, e que ela era bem parecida às contrações prévias ao nascimento. Eu, que pari sem anestesia, lembrava bem dessa dor. Uma dor que vinha fazendo o chão tremer devagar, mas logo subia em pico, e já me arrebatava. Mas, no parto, eu já sabia que aquela era uma dor de nascer, que era assim desde que mundo é mundo, não por ser um castigo imposto às filhas de Eva (como nos enfiaram goela abaixo), mas porque, por uma razão inexplicável, a vida também dói.

Contrações. Era assim que a onda se apresentava. Reconheci o padrão. As mesmas curvas, a mesma intensidade. A diferença era que, ao invés de se manifestarem ao pé da coluna, as contrações eram no peito.

Por quê? O que está me batendo à porta? O que é que nasce pelo cardíaco? Quanto tempo o parto dura?

(perguntas ainda sem respostas)

*

Só o tempo dedicado a refletir sobre essas questões me traria alguma paz, foi o que eu entendi. Longe de querer buscar respostas simplistas, mas também sem sucumbir à impotência, me dediquei àquela conversa como quem se entrega a um último recurso.

Mas…

Diálogo demanda escuta.

Escuta demanda pausa.

Pausa demanda tempo.

A vida artificial do calendário meritocrático respeita o nosso pulso?

É claro que não.

“Trabalhe enquanto eles morrem”, é o que a cartilha diz.

Como fazer, então, para conversar com aquele bicho-onda em meio às infinitas demandas esperando pela minha devoção?

Tive que abrir mão de várias delas, me expor, falar a verdade. “Não estou dando conta, gente”. Negociei prazos, pedi apoio, deitei por terra o orgulho. Pessoas queridas dividiram o fardo. Ao menos por uma semana (pensei), que se tornaram duas (na marra), depois mais. “Vou ter que trocar o pneu com o carro em movimento”, eu dizia. Movimento? Pra onde?

Busquei outros diálogos. Conversando com uma amiga que também já havia passado por isso, ela foi certeira:

– Amiga, a gente tá sofrendo é de capitalismo.

*

Aquilo também fez sentido, “sofrer de capitalismo”.

Ou, como preferi chamar, capitalite. Tinha que ser algo assim, nome de doença que dá geral, tipo amigdalite, conjuntivite, faringite, hepatite. Porque esse não é um problema só meu, é um surto coletivo, mas que se disfarça de fracasso individual, escondido na vergonha meritocrática de não se “autorealizar” num mundo onde termos a suprema liberdade cocriar tantas possibilidades.

Capitalite. Adentrei aí, para ver o que tinha nesse balaio. Encontrei tanta coisa, tanta coisa juntaemisturada, um emaranhado tão grande, meu Deus, que respirei fundo para não me perder.

*

A primeira coisa que vi: essa pandemia é democrática. Evidentemente, é fatal para as grandes maiorias chamadas de minorias, mas não deixa de fora nenhuma das outras castas. No pé da pirâmide, materializou-se como uma furiosa arena pela sobrevivência, alimentada por aliados como o racismo, machismo, desigualdade social, homofobia, xenofobia, capacitismo, e tantos outros desequilíbrios que atacam o nosso campo de necessidades básicas. Literalmente, conspiram contra a vida, exterminando o ser na sua existência mais elementar, material.

Contudo os sintomas da capitalite não se resumem “apenas” aos infinitos boletos do “pacote básico de subsistência” postos à mesa todo mês, pontualmente, tendo você condições de pagá-los ou não. Conforme vai subindo pela escalada social, onde supostamente a arena atinge menos pessoas, vemos que essa doença ataca também o humano no seu aspecto mais subjetivo, eliminando nossa capacidade de respirar no presente e de vislumbrar um futuro.

Esse segundo sintoma da capitalite não é tão evidente, mas é tão atuante quanto o que está explicito. No meio da minha crise, quando toda a realidade perdeu nitidez, entendi que, da mesma forma que passei boa parte da minha vida espremendo a barriga para caber no Mito da Beleza, também espremi meu precioso tempo, meu ânimo e minha força criativa para caber no Mito da… autorrealização?

Que palavra define?

Como nomear essa fantasia generalizada que faz com que acreditemos que, se nos destacarmos do corpo da humanidade, se nos desnaturalizarmos, seremos mais visíveis, logo felizes?

*

A individuação é inerente ao ser, e ela acontece independentemente de alguém nos “aprovar” como um ser existente. Mas, como nos desconectamos dessa percepção, agora acreditamos que, para sermos relevantes, precisamos delegar poder a uma entidade externa chamada “outros”. Nessa distorção, a busca por qualquer individualidade gera angústia.

Angústia dói.

Como remédio, então, além da arena da sobrevivência (que é uma dinâmica compulsória), também nos é proposto viver um jogo paradoxal: uma “gincana de felicidade”, que tem como meta a conquista da plenitude, mas cujo caminho traçado, pelas vias tortas que segue, a impossibilita. Sim, mesmo quando se alcança o objetivo traçado, o sucesso é transitório, configurando, assim, um moto-perpétuo na busca e, consequentemente, no jogo. Obviamente, nada disso é dito, caso contrário a gincana não daria certo. É necessário haver uma esperança de êxito, mas apenas para os mais puros ou esforçados. Os merecedores.

Ainda que se oculte a falácia, a prática dessa gincana tem gerado exaustão, e algo em nós acusa que “algo de errado não está certo aí.”. Então, por que ainda optamos por seguir as regras?

Arrisco dizer que é por desespero, porque elas nos prometem entregar um caminho certeiro para o fim do sofrimento. Ainda que, para nos encaixarmos no jogo, precisemos nos desumanizar e aprender a chamar de meta o que é apenas desejo. E desejo não é necessidade ou vontade, é pura ânsia, um buraco sem fim.

Os povos antigos já deram um nome para isso, Samsara, e há tempos nos ensinaram como superar a ilusão gerada por este ciclo fechado. O problema é que não temos mais tempo para ouvir a sabedoria ancestral, porque a arena da sobrevivência, aliada à gincana da felicidade, exigem toda nossa atenção. Ainda que essas dinâmicas apresentem tantas falhas, como já não temos energia para vislumbrar outra realidade possível, sucumbimos ao que está dado, com mais ou menos consciência. E acabamos preferindo ignorar o fato (cada vez mais impossível de ocultar) de que tais jogos jamais serão vencidos, porque propõem como única saída a conquista individual.

Eis a grande meta.  

Ou propósito, chame do que quiser. A causa pode até ser nobre, mas se o motor que te anima a jogar é a fuga de uma vida medíocre (que nunca foi) ou a busca pelo pódium de “pessoa especial”, a gincana irá te aprisionar mais do que a busca pela sobrevivência. Não porque ter uma causa ou se autorealizar seja algo ruim, mas porque os efeitos colaterais da capitalite no nosso cérebro transformam o ideal humano, aquele chamado “sonho”, no maior gerador de boletos que existe.

Então, além de todas as contas postas à mesa, aquelas básicas, encontrei, debaixo da toalha, outra imensa dívida: aquela contraída pelo simples fato de desejar ser, nessa existência, alguém relevante.

*

Solidão.

Ainda no meu casulo, entre um diálogo e outro com o “bicho-onda”, chorando em posição fetal, também testemunhei o desfile de dores causadas nas nossas relações, tanto as interpessoais quanto a que temos com a gente mesmo.

Puro abuso, abuso constante. Abuso estrutural, já existe essa expressão?

Percebi o quanto me oprimia em nome da minha realização: “Aguente só mais um pouquinho”, é o que eu disse a mim mesma por anos a fio. “Tá quase lá”.

Quase lá.

Abuso que gera esgotamento, e nos impede de colher da vida suas verdadeiras dádivas, todas gratuitas, todas disponíveis hoje, em abundância, como o ar a se respirar. Tão bonito falar isso, mas tão difícil de ver. Porque o que aprendemos a chamar de sonho ofusca essa simples realidade. E nos torna menos gente.

Ao nos desumanizar, desumanizamos quem está conosco. O outro torna-se apenas o recurso para atingir a próxima fase, ou alimento pra compensar a falta. Enfraquecemos as relações, condicionados que estamos a julgar precocemente as pessoas nos tribunais midiáticos por não termos mais paciência para uma percepção mais generosa. A multiplicidade de quereres impede a profundidade, nos mobiliza a trocar de lugar constantemente, nos induz a colecionar experiências não porque a vida nos convida verdadeiramente a elas, mas pelo simples “medo de não aproveitar ao máximo todas as ofertas”. Colecionamos vínculos na dispensa da nossa “rede”, para uso descartável, presente ou futuro. E tudo isso encontra brecha, justificativa, porque nos tornamos escravos dos nossos próprios desejos, que aprendemos a cultuar como deuses.

Perdidos na ânsia de sermos servos fiéis deste panteão, nos esquecemos de nossa integridade. Da nossa dignidade. Do nosso respeito.  

Respeito. Palavra quase desaparecida, entre tantas urgências. Substituída por outra, tão em moda: cansaço.

*

Também estou cansada.

Cansada de diagnósticos sem cura, cansada de previsões fatalistas, da acidez sem medida, e até das palavras, antes minhas amigas.

Percebi o quanto necessitava de silêncio.

Se agora desatei a falar é porque passei dias na muda, trocando de pele calada na noite. Doída. Tentando discernir o que é uma crise genuína, própria do processo humano, aquela dor ancestral que precede o nascer, e o que é uma crise circunstancial, invasora de mentes, doença de época, forjada por um sistema estúpido que nos é artificialmente imposto a todo momento. A todos nós, e por todos nós.

Sim, somos todos responsáveis. Este é um pacto coletivo.

O que fazer?

Ainda recolhida no ninho das pequenas escutas, só posso dizer: não tenho respostas, nem a pretensão de que as terei.

Apenas senti que precisava entregar, um a um, o que aprendi a chamar de sonhos. Com eles, ofereço também a vã esperança colada no fundo da minha caixa de Pandora, com a intenção de arrancar das minhas crenças o “agora vai”, buscando viver o “agora é”.

O que tem me mantido de pé é a bondade que eu sinto vir da nossa gente, essa força que ainda resiste a toda desumanização. Sim, ela existe. Muito além de palavras ou ideologias, foram os olhares sinceros, as mãos dadas no silêncio e os abraços carinhosos que me ajudaram a restaurar um pouco da minha fé no porvir.

Só acreditando que há um futuro possível eu consigo libertar o novo ser que pede para nascer.

Talvez sonhos mais verdadeiros brotem deste parto.

Talvez.

Sinceramente, não quero ter nem mais essa expectativa. Minha cura, atualmente, é não mais querer, para não mais dever. Ou, se o querer for inevitável, que ele se contente em dividir comigo meu vazio.

Quem sabe,

neste silêncio de desejo,

eu encontre novamente

Espaço

E tempo

De ser.

E, junto a toda gente,

Conspirar.

ânsia

Qual é o palco?
Qual o lugar que me resta?
Se sou chamada pra festa mas nela não me cabe mais?

Qual é a voz?
Qual é o tom que se expressa?
Se sou um sol que infesta, ou chama que não satisfaz?

Qual a canção?
Qual é a nota liberta?
.
.
Se sou um som que espreita
.
Eita
Eita
.
Se sou um eco que clama
.
Ama
Ama
.
Se sou
Sou?
.
u.
.
.

(poema integrante do conto fantástico A Rainha das Pérolas)

Me alugo para sonhar

Este título – o mais perfeito, ao meu ver, para traduzir o ofício de ghostwriter – não foi escrito por mim. É o nome de um conto de Gabriel Garcia Márquez.

Eu poderia ter pensado em outras palavras, mas foram exatamente essas que me vieram à mente. Mas, ao tomá-las de empréstimo, foi inevitável me deparar com o dilema: por que eu não criei um título original? Por que, sendo capaz de forjar personagens, histórias, universos, eu decidi me expressar através de palavras cunhadas por outro escritor?

(Eis a questão.)

O trabalho de quem escreve por encomenda passa por lugares assim, espinhosos. Não me refiro àqueles “jobs” solicitados por pessoas mais práticas, que buscam reunir em algumas páginas um conteúdo específico, por conhecerem a potência que esse objeto carrega. Um filho, uma árvore, um livro – não é essa a tríade da imortalidade? Tais pessoas não querem escrever, só precisam de seu nome na capa para circularem com o livro pelo mundo, como síntese do seu conhecimento, ou da sua história de vida.  

Porém há um segundo grupo: o das pessoas que querem muito escrever, mas não se sentem prontas para isso. É aí que vivem as maiores contradições. Porque, ao mesmo tempo em que sentem-se agraciados por ter sua expressão perfeitamente transposta em frases, parágrafos e capítulos, pode-se ouvir, de um lugar bem longínquo, com uma ponta de tristeza: “Por que não fui capaz de criar algo assim?” Nesse caso, o termo “ghostwriter” torna-se irônico: ele, que deveria se referir ao ocultamento da escritora ou escritor contratado, pode acabar nomeando um sentimento de ausência de quem contrata. O “ghost” torna-se o nome que consta na capa, uma presença vazia num conteúdo forjado. Por isso, não raro, a pessoa pode se sentir uma fraude. E, por mais que esse tenha sido o “combinado”, esse desassossego cobra seu espaço, e acaba invadindo a arena dos afetos.

É possível também que aconteça o contrário: uma escritora ou escritor que, por jamais assinar seus textos, sente-se como um ser ausente não apenas nas obras que escreve, mas na sua própria expressão no mundo. Esse é um perigo constante para quem se aluga para sonhar: não mais lembrar onde fica a própria casa.

Acho que já deu para perceber o quão dramático pode ser esse ofício. Eu poderia contar páginas e páginas sobre a vida de uma ghostwriter, incluindo passagens de inveja, vaidade, transtornos de personalidade e até abusos –  Deem a uma escritora um mote, e ela pode lhe devolver um romance. Mas, sinceramente, prefiro falar sobre como duas pessoas em plena sintonia podem compor uma história juntas – ainda que apenas uma delas dê àquela obra palavras. É essa a relação me interessa construir. E digo “construir” porque descobri que ela não está dada de saída, precisa ser intencionada no passo a passo do trabalho.

Isso começa dando voz à pessoa que te contrata. Não apenas no livro, mas na própria relação interpessoal. Para mim, a pessoa que assina o livro deve ser, no mínimo, uma coautora. E isso pode acontecer sem que ela redija uma linha sequer, mas é essencial que reconheça, em cada palavra criada, algo que falaria. Ou até algo que já disse, nos tantos encontros prévios à escrita propriamente dita, recheados de memórias, insights e conversas profundas que – ao menos na minha metodologia – são parte fundamental do processo criativo.

Essa coautoria se constrói com alteridade. E esse conceito, para funcionar bem, precisa ser uma via de mão dupla. É esse o campo de força que compõe um bom livro por encomenda, quando nos reconhecemos nas histórias do outro, a ponto de também serem nossas. Não por posse, mas por identificação.

Você me mostrou parte da minha história, e eu te mostrei as palavras que a eternizam.

Nessa dança, não há fantasmas.

Apenas conexão.

(ilustração de @desenhonario / @lucasdrlopes )