A princesa e o pescador

Lenora, uma princesa encantada, linda e formosa, já havia recebido a visita de inúmeros pretendentes. Os mais corajosos traziam-lhe objetos exóticos de lugares distantes, os mais líricos criavam versos de amor incomparáveis, aqueles mais impetuosos lhe ofereciam jóias jamais sonhadas, com pedras puríssimas trazidas de minas profundas. Porém tudo para ela era inútil. Os presentes que conseguiam entrar pelos portões do palácio transformavam-se em pedra bruta, da mais comum, na melhor das hipóteses. Palavras amáveis e lindas canções soavam como ofensas e guinchos, provocando um terror jamais visto, sobrepondo-se ao esplendor da princesa.

Era essa a maldição do palácio, lançada há muitos e muitos anos por um velho feiticeiro que se sentira desprezado por Lenora: Nunca mais ela poderia ser amada por nenhum outro ser vivente. Mas por se tratar de um homem perverso, concedeu a ela um único fio de esperança: uma remotíssima saída. A única forma da princesa quebrar o feitiço seria cruzar os portões do palácio de mãos dadas com outro ser humano.

Para isso, cada pretendente teria que se submeter a três grandes provas: Na primeira, passando por dois guardas, deveria ofertar seu maior tesouro. Ricos príncipes, de posse de um valioso bem – mas não o mais precioso – terminavam ali sua jornada atingidos implacavelmente por um raio, pois o feitiço assegurava que nenhuma mentira fosse encoberta. A segunda prova era curta, porém intensa: Cruzar a ponte levadiça, que provocava logo ao primeiro passo um tremor jamais sentido, despertando um medo intenso e uma instabilidade sem tamanho.

Por mais difíceis que fossem as duas primeiras provas, até ali muitos conseguiram chegar. Mas o feiticeiro, conhecedor da sombra dos homens, sabia que humano algum suportaria a metamorfose à qual estaria sujeito na terceira prova. Dessa forma, ele selou sua vingança: A princesa estaria fadada a algo mais cruel que a solidão infinita: estaria sujeita à eterna espera.

Lenora não sabia disso, e atava-se a essa possibilidade como a única razão de viver. Do alto de sua torre, avistava cada um dos seus pretendentes que ousava se aproximar do castelo, testemunhando, em muda torcida, alguns que chegavam perto dos portões. Nessa hora, sempre, um corvo sobrevoava sua cabeça e grasnava com voz metálica, parecida à do feiticeiro: Jamais! Ao ver a profecia confirmada, a princesa lamentava, e foi tornando-se, pouco a pouco, a Dama dos Tristes Ais. 

Muito tempo se passou, porém o encantamento, para a princesa, tinha o efeito contrário: Tornava-a cada dia mais bela e desejada. Ano a ano, aumentava a fila de príncipes, cavaleiros, ricos comerciantes, todos instigados pela maldição do castelo. Um nobre e corajoso príncipe, certa vez, chegara bem perto, conseguira passar pelas duas primeiras provas e, mais que nenhum outro, esteve próximo de cruzar a terceira. Ele levava consigo dois tesouros ofertados: em uma das mãos, uma espada do mais puro metal, cravejada de diamantes. Na outra, a rosa mais perfeita e delicada que seu reino havia produzido. Os portões estavam sempre abertos, nenhuma outra resistência era oferecida. Mas ao segurar a rosa um pouco além do limiar, já no interior do castelo, vira com terror a flor murchar num segundo, enquanto verrugas virulentas brotavam por sua pele ao lado de grandes pêlos grossos, suas unhas cresciam e ficavam amareladas, e isso já foi o suficiente para que ele cortasse sua mão com a preciosa espada e corresse horrorizado para nunca mais voltar. Nunca mais.

Mesmo com essas histórias correndo léguas, ainda não lhe faltavam ofertas. O brilho emanado por Lenora era como um grande farol, orientando viajantes de terras cada vez mais longínquas. Enquanto esperava, tornou-se quase como uma estrela cintilante, transformando seu desejo numa dança infinita em que girava, girava, girava do alto de sua torre de eterna esperança.

Um certo dia, um jovem pescador apresentou-se. No passado, sua origem humilde tornaria seu acesso ao castelo absolutamente proibido, mas depois de tantos séculos em que a maldição operava, os critérios primordialmente estabelecidos foram sendo esquecidos, estendendo o acesso às populações mais simples. Trazia em suas mãos sua oferenda: uma pequena vara de bambu com um pedacinho de chumbo ligado ao anzol, seu instrumento de trabalho. Enganchado a ele, um pequeno peixe dourado, porém de um brilho vívido, que lhe custara anos de audaciosa estratégia, paciência e habilidade para que fosse fisgado. Era, certamente, seu maior tesouro. Desse modo, passou pela primeira prova, apesar de ter sido recebido pela guarda com gargalhadas por sua ingênua pretensão. Mas ele não se abalou. Nascido em uma aldeia próxima ao castelo, havia sido cativado pelo brilho pulsante da Dama dos Tristezais desde a tenra infância, e toda sua vida foi dedicada a se preparar para aquele momento.

Ao chegar na ponte, resistiu aos tremores que tomavam seu corpo como ondas, começando pelos pés e depois atingindo a própria estrutura óssea, como se seus músculos virassem água e seu corpo perdesse todos os contornos. O medo que sentiu foi incomparável, mas ele já havia atravessado algumas tormentas marítimas, e confiante que mais uma vez a sorte estaria ao seu lado, navegando nas ondas que seu corpo emanava, conseguiu chegar até os portões.

Mas frente a frente ao umbral, ele oscilou.

Lá do alto, o corvo profetizou: Jamais.

Então ele lembrou-se do verso que, desde menino,

ouvia junto aos ruídos do cais.

No limiar de entrada, outra voz encantada indagou:

Quem és tu, ó peregrino, que bate nesse portal?

Sou marinheiro, retirante, da tribo dos homens do sal

Para ofertar à princesa, trago-lhe esse vil metal

E preso ao chumbo, atado ao gancho, esse dourado animal.

Que em sacrifício se deu, tirando da terra o mal.

Feito ele, agora eu

me entrego ao destino fatal.

Fechando os olhos, sem mais oscilar, num salto o pescador adentrou no castelo. Sua pele foi dilacerada enquanto ele se tornava uma enorme e terrível criatura, e todo seu nobre sentimento tornou-se forte desejo de aniquilar brutalmente qualquer forma de beleza. O peixe dourado que ele carregava fez-se em cinzas imediatamente. Seu caminhar tornou-se pesado e errático, ainda agravado pela cegueira. Porém, ao dar três passos para dentro do castelo, das cinzas onde jazia o peixe nasceu um enorme boto de ouro. Ao abrir seu bico, deixou sair o mar de lágrimas que a Dama dos Tristezais verteu por toda a eternidade que atravessara em pranto. Com o mesmo bico atirou a criatura em seu dorso e foi nadando pelas escadas, tal como uma cachoeira invertida, até o aposento onde vivia a princesa.

Ao sentir a força das águas que atingiram o topo da torre, Lenora, cuja dança já havia se transformado num transe, abriu os olhos pela primeira vez em séculos. Em segundos, o ser grotesco no qual o pescador havia se transformado avançou sobre ela, mas o brilho que emanava do boto fundiu-se com a luz que ela também irradiava, obrigando o horrível ser a abrir os seus grandes olhos amarelos. Nesse momento, ela mirou na retina do monstro que a devorava e viu, lá no fundo, o olhar do pescador.

Então, no mais denso e escuro, se encontraram,

e palma a palma, pelas mãos se beijaram.

Palma a palma, o portal atravessaram.

Alma a alma, para sempre se amaram.

E “nunca mais”…

Nunca mais escutaram.

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